domingo, 7 de março de 2010

Voltar


Despi-me de fantasias e de viagens de sonho, de paisagens daquelas que se prendem em nós e não nos deixam larga-las, despedi-me dos tons de pele escura e dos dialectos desconhecidos. Fugi da confusão e das aventuras para me enterrar no abrigo que conheço como a palma da mão, mergulhada nos sons familiares e nos cheiros a casa. Mas foi quando achei que estava mais segura que o chão fugiu debaixo dos pés, que, no lugar das maravilhas e das pessoas de todo o mundo um vazio, um silencio dentro de mim que me atordoa os sentidos e me entorpece os gestos já cansados desta monotonia. São as saudades das conversas e das pessoas e das viagens, dos brilhos doces de que agora sinto falta, são as saudades dos azuis que me enchiam os dias, dos sabores tropicais e das manhas de rotina preguiçosa que duravam eternidades. São saudades até dos onibus apinhados, das estradas esburacadas e dos sotaques mais estridentes, dos batuques e das melodias. São vontades que eu tenho de sair pelo mundo e encher-me de poeiras e sujidades e cores que nos tornam tão mais verdadeiros. São vontades de ir e de me modificar, de descobrir algo em que acreditar, correr, aprender e voltar outra vez a pessoa que vim sem as preocupações que me enchem o peito nem as rotinas monótonas que me prendem e me transformam. - 'Esperando veleiros perdidos'




'Não se mostra o trajecto
A quem parte para se perder
...
E é como quando pensas que estás a chegar
E não deste um passo'

[Mesa - Boca do Mundo]




sábado, 20 de fevereiro de 2010

Diários de viagem I




"Senti hoje, pela primeira vez em muito tempo, uma paz de espírito que me inundou e tomou conta de mim. Os caminhos puxavam-me para as ruas e avenidas que eu não conhecia, queria andar e vencer a sede insaciável de mundos e coisas quando dei por mim no vácuo. Deixei-me ficar então no abrupto silencio que me invadiu. Sentei-me num banco corrido como há muito não fazia e deixei toda a calma que me rodeava encher cada pedaço de mim, deixei os rangidos dos tacos soltos ecoarem nos ouvidos e os dourados das decorações chegarem até mim numa meia luz - quase obscuridade - de paz. Fui vencida pelo cansaço dos dias e pelas perdas, as desventuras do caminho, os ódios e as raivas e as dores que trazia comigo, e ainda se fazem lembrar em mim. Chorei as incompreensões, os desapontamentos, as expectativas e até as alegrias. Foi então que me vi cheia de nada num vazio que me acalmou os sentidos e me arrepiou a pele, um burburinho interior de paz numa vontade quase aflitiva que aquela sensação se prolongasse indefinidamente. Tudo fez sentido e sei que é quando menos esperamos que encontramos os rumos das coisas e que as dores devem ser choradas tanto quanto for preciso para largar do peito o peso de não sabermos onde as arrumar. " (e que continuamos sem saber)
Santiago do Chile - 8 de Janeiro


Reconheço em mim agora as lágrimas que valem a pena, aquelas que não temos escolha e carregamos em todo o caminho, as que aparecem no meio das lembranças e das memorias e que nos fazem continuar a lutar e saber que na vida há importâncias que não se negam e obstáculos que nos atrapalham os caminhos. São tristezas que ficam presas a nós mas que nos ensinam a seguir em frente e a querer sempre mais tanto quanto nos fazem ter saudades e evocar pedaços de tempo que parecem demasiado reais... mas impossíveis. Que trazem com elas as pessoas de que somos feitos ao longo do caminho.




"I'll meet you in the shade of an orange tree"

David Fonseca - Orange Tree

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Mundos


Parti sem ter certezas nem vontades concretas, com o destino marcado mas o percurso incerto na certeza que iria onde os pés e as empresas de transportes rodoviários me levassem. Parti sem querer ficar no mesmo lugar, com um frenesim interior de ver e conhecer e mudar. Entre o desespero das primeiras horas de auto-reflexão e as dificuldades que o meu caminho encontrou enchi-me de amigos e de passeios pela cidade, enchi-me de outras culturas sem sair do meu primeiro poiso. Encantei-me com a cidade cheia de luz e cor e com as pessoas, os amigos de toda a parte que chegavam e partiam e me enchiam de experiências e de vidas que me fascinaram. Viajei e convivi comigo mesma durante horas a fio entre estradas e montanhas e campos e vistas absolutamente indescritíveis. Conheci pessoas e sítios que trago comigo, desertos incansáveis e azuis translucidos que não esqueço. Tenho colados à pele os cheiros dos lugares e os brilhos das luzes e dos céus inesquecíveis. Vivi culturas com as quais nunca sonhei, extremos de calma e de agitação impensáveis. Deslizei pela América do Sul fora num tempo que fugia e não me deixava guardar tudo o que via, numa urgência de andar em frente e de seguir viagem a procura de mais. Preenchi-me de mim mesma e de mundos que me foram completando e acabei a viagem inteira. Pelo caminho curei as dores que levava por dentro e no lugar delas deixei as imagens e os mundos que me inundam agora. Arrumei as tristezas e ultrapassei-as tanto quanto pude nos lugares em que menos pensei encontrar conforto. Agora sem a mochila camuflada às costas nem as botas de montanha nos pés sinto o vazio das alegrias de viagem e das noites precárias, dos pés sujos e do cansaço que acompanhava a felicidade de correr o mundo pelos meus próprios meios. Ficam as marcas do caminho, as cicatrizes que nunca se apagam e que ficam por dentro depois de uma viagem assim. Os pedaços que ela nos preenche e nos completa e nos emenda, como se nos tornasse mais inteiros.




'E deixar-me devorar pelos sentidos,
e rasgar-me do mais fundo que ha em mim.
Emaranhar-me no mundo, e morrer por ser preciso,
nunca por chegar ao fim.'

Mafalda Veiga - Por Outras Palavras

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Amarras

Criei amarras que me prenderam ao chão desta terra e às pessoas que trouxe comigo todos estes meses, criei hábitos, manias, moldes, habituações aos costumes mais estranhos e aos paladares mais exóticos. Enraizei, tornei-me parte deste sitio e este sitio parte de mim, chamei-lhe casa e vivi nele mil alegrias. Transformei-me, recriei-me e agora posso dizer que mudei. Adaptei-me e gostei de me adaptar, vivi mil corridas contra o tempo, saí para voltar. Fiz amigos que levo comigo para a vida, aprofundei outros, conheci. Encontrei pessoas que me fizeram rir e sentir-me confortável na minha própria pele. Desesperei, descobri mais vezes do que as que queria, que a vida é muito curta e extremamente imprevisível, que nunca devemos deixar nada por dizer. Despedi-me aos poucos das pessoas e dos lugares. Ainda volto, mas as amarras são desfeitas agora para que a despedida final custe menos. Assim, preparada para a exaustão da viagem vou com saudades daquilo que vivi mas na certeza que não podia ter aproveitado melhor cada segundo, cada gargalhada, cada noite, cada momento.


Desfaço agora os nós que me ligam a tudo para poder ir e encher-me de paisagens e vidas e culturas. Para poder ter em mim espaço que 5 meses não deixaram para o resto do mundo.




Levo-vos comigo a cada passo.

'pokito a poko etendiento que no vale a pena andar por andar, que és mejor caminá pra ir cresciendo'
Chambao - Pokito a poko

sábado, 19 de dezembro de 2009

O Paraíso Ecantado, Ilha do Mel






Caminhei com algumas reservas num sonho de mares a perder de vista e areais sem fim. Fascinei-me com as paisagens, os movimentos, as cores. Fiquei colada ao silencio e à calma que ressoavam dentro de nós. Com uma humidade que colava o ar à pele caminhamos cada trilha e cada palmo de terra numa vontade de ficar e viver e aproveitar cada minuto daquela ilha que ultrapassava e vencia todas as nossas expectativas irreais de paraíso em forma de pedaço de terra. Fomo-nos surpreendendo pela beleza a cada olhar, a cada minuto em que descobríamos do que era feito o mundo em que nos encontrávamos. Partimos sem termos o tempo suficiente para nos enchermos por dentro da magia única e brilhante daquele lugar e, apressados por outras partidas, com pouca vontade de despedidas dos lugares e das pessoas embarcamos num dos mais inacreditavelmente bonitos regressos a casa que já vivi! Ficam em nós as paisagens e as lembranças, os cheiros e as cores, as memórias coladas em nós de cada pedacinho que prendemos e guardamos para a vida.







'Numa vaga de espuma e sentidos guardados, no fundo do olhar'
Mafalda Veiga . Vestígios de ti




quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Proximidades


Chegamos com o peito aberto, apaixonados pela distancia e os dias, pelas pessoas e pelos momentos. Criamos laços e apegamo-nos aos sorrisos, aos olhares, aos pequenos nadas que as pessoas trazem consigo e que nos prendem e nos transformam. Começamos a por travões, a erguer em nossas volta barreiras, muralhas, daquelas que não querem deixar entrar quem vem, com o medo da saudade. Tememos pelas despedidas e pelas separações, fizemo-nos de duros e de valentes e levantamos paredes e estereótipos e conceitos em torno de tudo e todos. Contamos o tempo, e então tudo se mostrou com uma clareza obvia. Despedimo-nos desarmados de defesas, na certeza de uma saudade imensa que nos invadiu muito antes do momento da partida. Fizeram-se mil promessas de mil reencontros nos quais ainda acreditamos. E tudo isto para nos mostrar que não adianta negarmos as pessoas que nos preenchem em certos momentos, mesmo que fugazes, do nosso percurso. Que pouco importa a duração de um momento desde que o aproveitemos no seu todo. Que apesar das distancias e das saudades cada uma das pessoas que nos invade o caminho trás com ela brilhos e formas únicos que se apropriam de nós em certa altura e que nos moldam e nos talham e nos ficam marcados. Negar tudo isso é negar parte de nós e dos laços que criamos, dos caminhos que escolhemos que fazem de nós o que somos. Negarmo-nos aos sofrimentos e às saudades só nos nega também as alegrias mais entranhadas e as amizades que levamos para sempre marcadas na pele.







'O tempo endurece qualquer armadura, e às vezes custa a arrnacar, muralhar erguidas à volta do peito que não deixam partir nem deixam chegar'

Fim do Dia ( Do lado quente da saudade) - Mafalda Veiga



Aos amigos que por cá conhecemos e deixam (muitas) saudades.



1 mês e 11 dias - Próxima paragem.. URUGUAI,ARGENTINA,CHILE, BOLÍVIA, PERU

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Quase saudade..




Os demónios que me atormentam têem sido exorcitados em e-mails de meio metro entre palavras topregas que me saem sem pensar num desabafo constante desta quase saudade da casa de sempre. Sobram então menos plavras para por aqui, como se os discursos explicativos exaustivos esgotassem a minha necessidade de escrever (sempre foi assim, sempre em todos estes anos me acalmaste os medos e recolheste as minhas experiencias em palavras que guardas para ti). Tranformam-se então estas missivas de comunicação trasatlantica em focos de saudade intensa numa quase vontade de voltar para vos ver e preencher as memorias e os espaços convosco. Mas quando releio todas essas tentativas de comunicação à distancia, todas essas minhas histórias e resumos e emaranhados de palavras desordenadas sinto um aperto por pensar no fim, por pensar nos sins e nos nãos desta minha demanda pelo mundo, numa vontade imensa e inexplicavél de fazer alguns segundos durarem uma vida, e que os dias se extendam num nunca-mais-deixar-este-lugar. Vejo os nós mais apertados a desfazerem-se em despedidas e os abraços de não querer ir como um dia foi também ao vir embora. Vejo o tempo chegar ao fim e eu a fazer planos de mochila às costas pelo mundo fora o resto da vida, a ver-me em modos e cores difentes dos normais. Fica então não só o local como a mudança, as cores novas de que agora somos feitos, o que aprendemos, o que crescemos, as pessoas e os lugares que guardamos nestes meses que passaram como dias e que por isso mesmo deixam saudade.














mais proximos do fim a cada instante.















'Hoy yo te encontré al final del dia
Respirando cielo y horizonte'
Mafalda Veiga - Una Casa