sábado, 20 de fevereiro de 2010

Diários de viagem I




"Senti hoje, pela primeira vez em muito tempo, uma paz de espírito que me inundou e tomou conta de mim. Os caminhos puxavam-me para as ruas e avenidas que eu não conhecia, queria andar e vencer a sede insaciável de mundos e coisas quando dei por mim no vácuo. Deixei-me ficar então no abrupto silencio que me invadiu. Sentei-me num banco corrido como há muito não fazia e deixei toda a calma que me rodeava encher cada pedaço de mim, deixei os rangidos dos tacos soltos ecoarem nos ouvidos e os dourados das decorações chegarem até mim numa meia luz - quase obscuridade - de paz. Fui vencida pelo cansaço dos dias e pelas perdas, as desventuras do caminho, os ódios e as raivas e as dores que trazia comigo, e ainda se fazem lembrar em mim. Chorei as incompreensões, os desapontamentos, as expectativas e até as alegrias. Foi então que me vi cheia de nada num vazio que me acalmou os sentidos e me arrepiou a pele, um burburinho interior de paz numa vontade quase aflitiva que aquela sensação se prolongasse indefinidamente. Tudo fez sentido e sei que é quando menos esperamos que encontramos os rumos das coisas e que as dores devem ser choradas tanto quanto for preciso para largar do peito o peso de não sabermos onde as arrumar. " (e que continuamos sem saber)
Santiago do Chile - 8 de Janeiro


Reconheço em mim agora as lágrimas que valem a pena, aquelas que não temos escolha e carregamos em todo o caminho, as que aparecem no meio das lembranças e das memorias e que nos fazem continuar a lutar e saber que na vida há importâncias que não se negam e obstáculos que nos atrapalham os caminhos. São tristezas que ficam presas a nós mas que nos ensinam a seguir em frente e a querer sempre mais tanto quanto nos fazem ter saudades e evocar pedaços de tempo que parecem demasiado reais... mas impossíveis. Que trazem com elas as pessoas de que somos feitos ao longo do caminho.




"I'll meet you in the shade of an orange tree"

David Fonseca - Orange Tree

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Mundos


Parti sem ter certezas nem vontades concretas, com o destino marcado mas o percurso incerto na certeza que iria onde os pés e as empresas de transportes rodoviários me levassem. Parti sem querer ficar no mesmo lugar, com um frenesim interior de ver e conhecer e mudar. Entre o desespero das primeiras horas de auto-reflexão e as dificuldades que o meu caminho encontrou enchi-me de amigos e de passeios pela cidade, enchi-me de outras culturas sem sair do meu primeiro poiso. Encantei-me com a cidade cheia de luz e cor e com as pessoas, os amigos de toda a parte que chegavam e partiam e me enchiam de experiências e de vidas que me fascinaram. Viajei e convivi comigo mesma durante horas a fio entre estradas e montanhas e campos e vistas absolutamente indescritíveis. Conheci pessoas e sítios que trago comigo, desertos incansáveis e azuis translucidos que não esqueço. Tenho colados à pele os cheiros dos lugares e os brilhos das luzes e dos céus inesquecíveis. Vivi culturas com as quais nunca sonhei, extremos de calma e de agitação impensáveis. Deslizei pela América do Sul fora num tempo que fugia e não me deixava guardar tudo o que via, numa urgência de andar em frente e de seguir viagem a procura de mais. Preenchi-me de mim mesma e de mundos que me foram completando e acabei a viagem inteira. Pelo caminho curei as dores que levava por dentro e no lugar delas deixei as imagens e os mundos que me inundam agora. Arrumei as tristezas e ultrapassei-as tanto quanto pude nos lugares em que menos pensei encontrar conforto. Agora sem a mochila camuflada às costas nem as botas de montanha nos pés sinto o vazio das alegrias de viagem e das noites precárias, dos pés sujos e do cansaço que acompanhava a felicidade de correr o mundo pelos meus próprios meios. Ficam as marcas do caminho, as cicatrizes que nunca se apagam e que ficam por dentro depois de uma viagem assim. Os pedaços que ela nos preenche e nos completa e nos emenda, como se nos tornasse mais inteiros.




'E deixar-me devorar pelos sentidos,
e rasgar-me do mais fundo que ha em mim.
Emaranhar-me no mundo, e morrer por ser preciso,
nunca por chegar ao fim.'

Mafalda Veiga - Por Outras Palavras