sexta-feira, 23 de julho de 2010

Fragmentos de pensamentos e de saudades


Há dias em que dou por mim a fazer listas mentais de coisas, as mais variadas. Dentro da minha bolha de pensamento são ordenadas razões, factos mas sobretudo momentos (tenho esta particularidade de fotografar momentos mentalmente). Ponho por ordem então os pedaços de mim que me fazem por dentro, as correntes que me movem e os pontos seguros que sei que posso pisar. Os moldes pelos quais me quero formar, as ideias que quero seguir mas sobretudo os lapsos de tempo que me transformam repentina e ferozmente e aos quais sei que devo aquilo em que me tornei.

Porque, como eu, não gostavas de teleféricos




Hoje no topo da minha lista está o momento em que abri aquele e-mail um mês depois, por ficar perdido na minha caixa de entrada tão atafulhada de coisas e pessoas pouco importantes e lixo que nos invade os sentidos e nos faz fixar coisas inúteis. Foram aquelas linhas de concelhos culinários e de vida lidas tardiamente que me fizeram ordenar por urgência as coisas de que quero ser feita. Foram aquelas palavras que me fizeram querer deixar de viver de medos e arrependimentos, moldar-me às coisas e aos momentos, ser por mim. Contigo descobri um sem número de coisas que me definem e posso dizer que me mudaste e que te agradeço como a ninguém. Fizeste, como sempre, dos concelhos mais banais nascesse uma lição em mim. Fizeste-me buscar pelo essencial e agora sei os filtros coloridos que quero na minha vida, mas também os filtros bruscos que me impeçam de cair na loucura do irreal.
Um obrigada que nunca chegou a ser entregue, uma bolha que tinha que ser exteriorizada de tantas vezes repetida dentro de mim.



'I'll meet you under a shadow of an orange tree'





'Happiness hit her like a train on a track'
Florence and the machine - Dog days

domingo, 13 de junho de 2010

Vestigios


Moldamo-nos às vontades próprias e aos danos alheios, vamos erguendo barreiras que nos endurecem e nos transformam. Colhemos pedaços dos lugares onde vivemos e das pessoas que nos marcam e fazemos de nós próprios uma mistura de experiências e de cores que nos vão dando forma. Percebemos que, uma vez que nos transformamos naquilo que sempre quisemos, não estamos dispostos a voltar atrás, que nos aprendemos a erguer ao longo do caminho e a abraçar as dores como lições de vida e as cabeçadas na parede como acidentes necessários ao nosso crescimento constante. Tornamo-nos mais nós num emaranhado de vestígios e de estilhaços, de todos os bocados de gentes e brilhos que nos rodeiam e nos ficam guardados por dentro.










'Quando de repente num segundo
qualquer coisa me vira do avesso
e desfaz cada certeza do meu mundo'

Quando (já nada é intacto) - Mafalda Veiga




No final de tudo o que nos define não são os erros que cometemos mas a maneira como os corrigimos ou mudamos com eles.


terça-feira, 13 de abril de 2010

Velocidades


Voltar e partir não são acções, são pedaços de vida, de tempo e de espaço que se ocupam em nós e nos fazem moldar e entrar numa metamorfose interior que implica muito mais do que um qualquer meio que nos leve para longe. Não são distancias, são sorrisos que se perdem e se ganham no percurso, são olhares, são pedaços de nós que se deslocam cá dentro noutros modos e noutros tempos. Eu sei, hoje, que voltar e partir são lapsos temporais em que nos apagamos e nos viramos para nós, são correntes que não se regem pelos nossos ritmos, são tempos que correm e saltam compassos e pés que correm para os apanhar. São medos e inquietações que temos sempre, que brotam do peito emaranhados com a aventura e a vida e as vontades que somos incapazes de negar. São viciantes pelos tormentos e as alegrias que nos causam tão simultaneamente que nos rendemos ao facto de nos descobrirmos durante o processo. São travos amargos e doces que nos deixam a boca seca e os olhos molhados, as mãos contorcidas no colo e as pernas a tremer. São verdades, momentos de uma lucidez única, que despontam em nós revelações nunca imaginadas. Somos nós, de facto, a sermos quem somos de uma maneira extraordinariamente verdadeira e inegável a adaptarmo-nos às velocidades estonteantes a que as coisas acontecem dentro de nós e a aprender a paciência de contemplar a sua vagareza cá fora.



'Nunca parto inteiramente,

vivo de duas vontades,

uma que vai na corrente

a outra fica presa à nascente fica para ter saudades'

Manuel Cruz - Nunca parto inteiramente






'Estás habituada às coisas de lá, em que tudo acontece tão rápido.. tens que te habituar que as coisas aqui acontecem a outra velocidade.'

domingo, 7 de março de 2010

Voltar


Despi-me de fantasias e de viagens de sonho, de paisagens daquelas que se prendem em nós e não nos deixam larga-las, despedi-me dos tons de pele escura e dos dialectos desconhecidos. Fugi da confusão e das aventuras para me enterrar no abrigo que conheço como a palma da mão, mergulhada nos sons familiares e nos cheiros a casa. Mas foi quando achei que estava mais segura que o chão fugiu debaixo dos pés, que, no lugar das maravilhas e das pessoas de todo o mundo um vazio, um silencio dentro de mim que me atordoa os sentidos e me entorpece os gestos já cansados desta monotonia. São as saudades das conversas e das pessoas e das viagens, dos brilhos doces de que agora sinto falta, são as saudades dos azuis que me enchiam os dias, dos sabores tropicais e das manhas de rotina preguiçosa que duravam eternidades. São saudades até dos onibus apinhados, das estradas esburacadas e dos sotaques mais estridentes, dos batuques e das melodias. São vontades que eu tenho de sair pelo mundo e encher-me de poeiras e sujidades e cores que nos tornam tão mais verdadeiros. São vontades de ir e de me modificar, de descobrir algo em que acreditar, correr, aprender e voltar outra vez a pessoa que vim sem as preocupações que me enchem o peito nem as rotinas monótonas que me prendem e me transformam. - 'Esperando veleiros perdidos'




'Não se mostra o trajecto
A quem parte para se perder
...
E é como quando pensas que estás a chegar
E não deste um passo'

[Mesa - Boca do Mundo]




sábado, 20 de fevereiro de 2010

Diários de viagem I




"Senti hoje, pela primeira vez em muito tempo, uma paz de espírito que me inundou e tomou conta de mim. Os caminhos puxavam-me para as ruas e avenidas que eu não conhecia, queria andar e vencer a sede insaciável de mundos e coisas quando dei por mim no vácuo. Deixei-me ficar então no abrupto silencio que me invadiu. Sentei-me num banco corrido como há muito não fazia e deixei toda a calma que me rodeava encher cada pedaço de mim, deixei os rangidos dos tacos soltos ecoarem nos ouvidos e os dourados das decorações chegarem até mim numa meia luz - quase obscuridade - de paz. Fui vencida pelo cansaço dos dias e pelas perdas, as desventuras do caminho, os ódios e as raivas e as dores que trazia comigo, e ainda se fazem lembrar em mim. Chorei as incompreensões, os desapontamentos, as expectativas e até as alegrias. Foi então que me vi cheia de nada num vazio que me acalmou os sentidos e me arrepiou a pele, um burburinho interior de paz numa vontade quase aflitiva que aquela sensação se prolongasse indefinidamente. Tudo fez sentido e sei que é quando menos esperamos que encontramos os rumos das coisas e que as dores devem ser choradas tanto quanto for preciso para largar do peito o peso de não sabermos onde as arrumar. " (e que continuamos sem saber)
Santiago do Chile - 8 de Janeiro


Reconheço em mim agora as lágrimas que valem a pena, aquelas que não temos escolha e carregamos em todo o caminho, as que aparecem no meio das lembranças e das memorias e que nos fazem continuar a lutar e saber que na vida há importâncias que não se negam e obstáculos que nos atrapalham os caminhos. São tristezas que ficam presas a nós mas que nos ensinam a seguir em frente e a querer sempre mais tanto quanto nos fazem ter saudades e evocar pedaços de tempo que parecem demasiado reais... mas impossíveis. Que trazem com elas as pessoas de que somos feitos ao longo do caminho.




"I'll meet you in the shade of an orange tree"

David Fonseca - Orange Tree

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Mundos


Parti sem ter certezas nem vontades concretas, com o destino marcado mas o percurso incerto na certeza que iria onde os pés e as empresas de transportes rodoviários me levassem. Parti sem querer ficar no mesmo lugar, com um frenesim interior de ver e conhecer e mudar. Entre o desespero das primeiras horas de auto-reflexão e as dificuldades que o meu caminho encontrou enchi-me de amigos e de passeios pela cidade, enchi-me de outras culturas sem sair do meu primeiro poiso. Encantei-me com a cidade cheia de luz e cor e com as pessoas, os amigos de toda a parte que chegavam e partiam e me enchiam de experiências e de vidas que me fascinaram. Viajei e convivi comigo mesma durante horas a fio entre estradas e montanhas e campos e vistas absolutamente indescritíveis. Conheci pessoas e sítios que trago comigo, desertos incansáveis e azuis translucidos que não esqueço. Tenho colados à pele os cheiros dos lugares e os brilhos das luzes e dos céus inesquecíveis. Vivi culturas com as quais nunca sonhei, extremos de calma e de agitação impensáveis. Deslizei pela América do Sul fora num tempo que fugia e não me deixava guardar tudo o que via, numa urgência de andar em frente e de seguir viagem a procura de mais. Preenchi-me de mim mesma e de mundos que me foram completando e acabei a viagem inteira. Pelo caminho curei as dores que levava por dentro e no lugar delas deixei as imagens e os mundos que me inundam agora. Arrumei as tristezas e ultrapassei-as tanto quanto pude nos lugares em que menos pensei encontrar conforto. Agora sem a mochila camuflada às costas nem as botas de montanha nos pés sinto o vazio das alegrias de viagem e das noites precárias, dos pés sujos e do cansaço que acompanhava a felicidade de correr o mundo pelos meus próprios meios. Ficam as marcas do caminho, as cicatrizes que nunca se apagam e que ficam por dentro depois de uma viagem assim. Os pedaços que ela nos preenche e nos completa e nos emenda, como se nos tornasse mais inteiros.




'E deixar-me devorar pelos sentidos,
e rasgar-me do mais fundo que ha em mim.
Emaranhar-me no mundo, e morrer por ser preciso,
nunca por chegar ao fim.'

Mafalda Veiga - Por Outras Palavras

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Amarras

Criei amarras que me prenderam ao chão desta terra e às pessoas que trouxe comigo todos estes meses, criei hábitos, manias, moldes, habituações aos costumes mais estranhos e aos paladares mais exóticos. Enraizei, tornei-me parte deste sitio e este sitio parte de mim, chamei-lhe casa e vivi nele mil alegrias. Transformei-me, recriei-me e agora posso dizer que mudei. Adaptei-me e gostei de me adaptar, vivi mil corridas contra o tempo, saí para voltar. Fiz amigos que levo comigo para a vida, aprofundei outros, conheci. Encontrei pessoas que me fizeram rir e sentir-me confortável na minha própria pele. Desesperei, descobri mais vezes do que as que queria, que a vida é muito curta e extremamente imprevisível, que nunca devemos deixar nada por dizer. Despedi-me aos poucos das pessoas e dos lugares. Ainda volto, mas as amarras são desfeitas agora para que a despedida final custe menos. Assim, preparada para a exaustão da viagem vou com saudades daquilo que vivi mas na certeza que não podia ter aproveitado melhor cada segundo, cada gargalhada, cada noite, cada momento.


Desfaço agora os nós que me ligam a tudo para poder ir e encher-me de paisagens e vidas e culturas. Para poder ter em mim espaço que 5 meses não deixaram para o resto do mundo.




Levo-vos comigo a cada passo.

'pokito a poko etendiento que no vale a pena andar por andar, que és mejor caminá pra ir cresciendo'
Chambao - Pokito a poko